Antonio Tabucchi (Pisa, 1943 - Lisboa, 2012) elucida, em O Tempo Envelhece Depressa, a sua vontade muito fortuita de também no leitor incutir o arbítrio apaixonado de mergulhar no incógnito, cogitar e questionar, embevecer-se nas histórias e na imaginação que as recria, deambular com as personagens e palavras, sinestésicas, cenestésicas, cinestésicas, confundir vida e literatura, realidade e ficção/sonho.
A priori, refletem-nos os olhos de uma mulher anónima a cerimónia do dezeno aniversário da morte de Josef. Entre “O velho professor” — idem irmão, Wolfgang, e poesia homenageante do falecido —, “a velha avó da casa de Genebra”, local da reunião, e Greta e seus dois filhos, elementos de “família tão hospitaleira e generosa que celebrava[m] um avô empreendedor capaz de transformar velhas estações de mala-posta numa lucrativa empresa comercial” da qual a protagonista é proprietária, sentimo-nos, com ela, desconexos, d’O círculo (I) desconectados, desaguados em areia, por os elos a essa cadeia circular genealógica serem-lhe tão escassos. E esses olhos, charcos que espelham a alma, fixados num sorriso inocente pintado de bolo, desenraízam da letargia uma ambivalência torpe “sangue e leite” — e com esta “automaticamente (…) uma infância que no entanto não era a sua”, um mundo onírico formulado (“em criança, (…) a avó levava-a por vezes até ao curral e ela contemplava fascinada aquele líquido branco que a avó espremia das tetas das cabras”, “recordação, que a bem dizer não era uma recordação, mas a recordação de uma história, (…) imagens que a sua fantasia construíra em criança enquanto ouvia as recordações dos outros”), transplantado num presente areado e inculto, inclinadamente acanónico (“vocês, aqui à vossa frente, têm um lago esplendoroso a transbordar, e ainda por cima com um repuxo no meio que projecta a água, (…) ao passo que a minha avó vivia rodeada de areia e em pequenina para arranjar uma bilha de água (…) tinha de caminhar até ao poço (…) debaixo de um sol abrasador (…), e vocês não podem realmente fazer ideia do que é a água porque têm água a mais.”) —, entrelaçando, em torrente, por introjeção e confrontação, vários raciocínios vários que acabam por colidir nas definições de tempo (que envelheceu sem darem conta), vida (que, em quinze anos de casamento, nunca viram produzida) e destino (horizonte inexorável): “Pareceu-lhe ser ela aquela criança que de repente dá por si com um balãozinho murcho nas mãos, (…) tinham-lhe apenas retirado o ar que o enchia. Seria então assim, o tempo era ar e ela deixara-o fugir por um furo minúsculo”? “Mas onde estava o furo?”; “é a verdade da carne, porque o corpo produz e a carne reproduz-se, transmitindo-se enquanto está viva, (…) desde que tenha água, esse líquido amniótico que dentro da placenta nutre a minúscula testemunha que recebeu a transmissão da carne. A água. Pareceu-lhe compreender que tudo dependia da água e não pôde deixar de perguntar se o seu corpo não precisaria de água, se também ela não conseguiria escapar ao destino dos seus, que durante séculos tinham lutado contra o deserto”; “mas o que é que conduz o todo? Haveria alguma coisa a comandar do exterior aquela espécie de fôlego imenso que ela via à sua volta?” — alucinações da dolorosa meditação (“Tomou-se de pânico, o seu olhar vagueou perdido”, “talvez eu precise de um pouco de ar fresco”, “devia estar encalorada, era um calor interior”), apaziguadas, em parte, pela “vista daquela planície amarelada [que] voltou a prender-lhe os olhos e os pensamentos”, e no todo, pelos cavalos, que agora observava, nas montanhas, aproximarem-se “com aquela cadência fluida que o sonho por vezes nos concede, como se navegassem no ar”. No chão árido, quente, poeirento, circundam-na veloz, magistralmente. São entes duma aparição reveladora, desenham o círculo subconsciente, portal catártico doutra dimensão; livres, libertam-na do pensamento: “pensou que tinha de continuar a pensar em não pensar em nada”. Enfim, “o horizonte era circular”: ficção indecifrável, a e de propósito, na realidade multi-interpretativa da extensão metafísica do autor.
“Sou o nada em torno do qual este movimento gira, só para que gire, sem que esse centro exista senão porque todo o círculo o tem. Eu, verdadeiramente eu, sou o poço sem muros, (…) o centro de tudo com o nada à roda.” escrevera, um dia, Bernardo Soares, transfixando o conto da sem-nome, “Vejo como quem pensa.”, justapondo-se às capacidades transfiguradora do real e criadora do sonho, que apreendemos em ambas as personalidades.
Recorde-se, no tocante à infância desta persona em estudo, a nostalgia, à semelhança desprovida de experiência biográfica e intelectualmente trabalhada, de Pessoa-ortónimo, desconsolado com o tempo que o despersonaliza ou 'despessoaliza' — sujeito à mesma mutabilidade que os fluidos (sangue, água e leite) que correm o corpo —, o impede de reconhecer-se a si próprio.
Os poetas destas estórias são alter-egos de quem procuram, são sonhadores, iludem-se (fingem-se ou fingem ser outros, consciente ou inconscientemente) ou iludem, a meio da imaginação, pelo jogo do se, pela nefelomancia, pela demência, pela confabulação, pela espionagem, pela hipnotização, pela engendração do passado, pela digressão. Mascararam(-se) — como palhaços.
Pic plec, plic pec, pic (II). E se os intervalos não fossem regulares? As gotas de morfina, como o contar do relógio, artifícios da vida, artificializam a passagem do tempo, asseguram uma existência, embora dolorosa ou momentaneamente harmonizada. “A dor” inicia e “a coisa mais bonita do mundo” termina a talvez mais movente parte desta antologia em que Ferruccio, escritor neurálgico, visita a tia, mãe morrente. “[A]gora já não vais a tempo de corrigi-la [a coluna]”, dizia o médico, mas “escrever (…) aquele romance que mais cedo ou mais tarde todos aguardam”, sim, esse era o seu ‘Objectivo’, “só que estes três anos, de tanto se espalmarem uns nos outros, parecem um só dia, ou antes, uma só noite”, “e o sítio certo, (…) vá-se lá saber onde se dá com o sítio certo, porque o lugar onde nos encontramos nunca é o sítio certo”. Esta é, fica esclarecido, a temática de toda a obra: numa corrida contra o tempo — seja o do relógio biológico, seja para a produção literária, seja do efeito do urânio, da confissão final, da pacificação, da restituição (da felicidade), da reivindicação, da sanidade ou da consciência do (ainda) real —, os “conflitos existenciais”, os “problemas com a mudança de idade” e o universo mnémico, fragmentado e nebuloso, dos protagonistas — ora surgem-lhes imagens (“dos bons tempos”, “lembramo-nos dos que já nos deixaram”), “emergindo de um tempo infinito”, “do poço das recordações”, ora, porque “as recordações de quando se é criança guardam-nas os que já então eram adultos”, contam-se-lhes “lembranças tão antigas” — incitam-nos à procura de um lugar, físico ou mental, onde encontrem significado para a vida, a sua identidade ou a sua realização pessoal.
Mas nem quando a dor irrompe, rompe a coisa mais bonita do mundo. A menina que, entretanto, via, de rosto calvo e sorridente, poderia afirmá-lo: sabia o porquê, mas não o declarara aos ouvidos de Ferruccio. Estaria o corpo deste, seu “ele” — “suspenso no movimento” “inacabado”, a “dispensar [d]a força da gravidade” — ilícito, inválido, ao ponto de impedi-lo de ser “eu”? A resposta, obscura, poderá estar no último conto.
Tabucchi tem, como a metáfora ao barroco italiano enuncia, o primor de captar vidas inertes, que tendem ou não para a cinesia: um antigo militar intoxicado, nascido numa terra quimérica, que, esperando pelo dia da sua morte, já transcende, pelas Nuvens (III), para um futuro que nelas pode prever, e no diálogo envolvente com uma criança intransigente deixa o seu legado; um malsim reformado que, comendo “em restaurantes de classe” e empregando-se alvos oficiosos — porque “se não, sentia-se perdido”, sem o trabalho e a mulher que davam “um rumo à vida” —, começa a questionar o local onde vive e a sua vida passada (“fazia sentido. Mas fizera mesmo?”) e conclui, ao confessar a um amigo, com o qual já só Os mortos [estarão] à mesa (IV): “A meu respeito eu não sabia nada”; um velho e despromovido “oficial do exército húngaro” que decide — ao ser reintegrado e reviver memórias, quando “[a]parentemente a vida (…) chegara ao fim” — confrontar, Entre generais (V), o seu arqui-inimigo homólogo; um homem que “no seu íntimo sentia o sopro da tramontana [símbolo, como do frio, da morte, dos antepassados]”, dantes perdida (“que procuras? desapareceu tudo, evaporaram-se todos”), encontra-a no ar de certo canto de certa mulher: enamorado (Yo me enamoré del aire - VI), volta ao “tempo que deixara de ser seu”; um advogado cinéfilo que conta como havia desmascarado, em sátira, com ajuda de um realizador “ilusionista”, memorado no Festival (VII), a justiça de um Estado ditatorial, conquistando a inocência penal aos seus arguidos; um velho que, decidido a não tomar comprimidos, por não querer “trigonometrizar” a memória, mas deixá-la “obedecer a si própria e à natureza”, consegue, na demência, reencarnar: “atravessar aquele portão e mergulhar no desconhecido”, livrar-se do pesadelo que o atormentava a vida, iludir-se inconscientemente: “Bucareste não mudou absolutamente nada” (VIII); um escritor que a si próprio narra a história de um homem — que se “interrogou onde estava, e porque razão ali estava, e até mesmo quem era” e que, num Contratempo (IX), “atravessou [um]a aldeia sem saber para onde ia como se soubesse para onde ir” — e cuja “imaginação facultava-lhe um real de tal maneira vivo que parecia mais real do que o real que ele vivia”, decide vivenciá-la, pessoalizando-a num “déjà vu” infinitamente repetido.
Talqualmente o conteúdo dos contos é, aliás, a epígrafe deste livro de despedida, repleta de simbolismo: “Ao seguir a sombra, o tempo envelhece depressa”. “Na verdade, não me é clara a acepção desta proposição, muito misteriosa e opaca. Podemo-la interpretar diversamente. O que se compreende por ‘seguir a sombra’? Referir-se-ão as nossas ilusões?” (Traduzido e adaptado) confessa Tabucchi, cismático.