Na mente de Fumito Ueda, sob princípios de design contrários aos mais convencionados, arquitetam-se, antes, os mundos que, só depois, darão azo a mecânicas. As primeiras ideias para Shadow of the Colossus — aliás, fomentadas pela vontade de construir algo singular — surgiram de criaturas autómato-viventes, de uma essência vaga que conseguisse estimular a mente do jogador. Aqui, todo o elemento serve a história, toda a ação que comete é-lhe íntima, e o jogador dela é escravo, alimentando-se da emoção que subsiste.
A sequência cinematográfica inicial é longa, tão longínqua foi a viagem até ao destino desconhecido, mas poderosa, poderosíssima. A câmara, tal como o olhar de quem joga, persegue o protagonista, Wander (ワンダ Wanda), encostado um corpo lasso a si que galopa calmamente entre vegetação enluarada, lágrimas derramadas pelo Céu, brisas poeirentas, ardores de um Sol desértico. O coro e a orquestra que acompanham a cinesia, sabem quando silenciar ou atingir os mais altos decibéis, transportando o jogador e as suas sensações. Atravessada uma ponte infinda, abrem-se as portas de um esplêndido santuário, onde dorme a consciência de Dormin. O corpo que traz, pousa num altar. Do chão irrompem sombras, espetros. Wander desembainha a espada e sacode-os com uma descarga de luz que se estende por toda a lâmina. Do alto ecoam vozes simultâneas; Wander fala com Dormin e mostra-se resoluto em fazer ressuscitar o corpo da donzela, Mono, que diz ter sido sacrificada injustiçadamente. É induzido a destruir dezasseis colossos que povoam as Terras Proibidas, pactuando com o castigo que daqui resultar. A espada anciã que consigo traz é condição sine quan non para cumprir o objetivo: serve de bússola, ao apontar um feixe luminoso na direção de cada colosso.
Prólogo do videojogo é, também, o solilóquio de quem, a descobrir ao depois, veste uma máscara e a mesma insígnia que o protagonista: “Esse lugar… partiu da ressonância de pontos cruzados… São memórias substituídas por entes e nada, gravadas em pedra. Sangue, rebentos, Céu — e Aquele com a habilidade de controlar seres de Luz… Nesse mundo, diz-se que, se alguém o desejar, consegue reviver almas mortas… Mas trespassar tal terra é estritamente proibido.”. Lenda que ao protagonista não menos conhecida será do que a quem, por ele, joga.
Doravante, toda a experiência é interativa, lúdica, e, contextualizado, o jogador começa o seu jogo: ouve o prenúncio do próximo colosso, chama Agro e monta-a, ergue a espada, segue o caminho indicado, procura pelo colosso (exploração), encontra-o, analisa o seu comportamento, decifra como subí-lo (puzzle), derrota-o (combate), regressa ao santuário. O ciclo é sempre idêntico, ainda assim, tudo menos monótono, tudo menos inescrupuloso, e a batalha — sempre à escala extraordinária de um boss — não se torna tão trivial tão cedo.
O tutorial é eficaz, quase invisível: para subir ao platô do primeiro colosso, o jogador deve ultrapassar um terreno construído com plataformas, às quais, bordas ou muros relvosos, terá que se agarrar, uma ação recorrente, quando quiser segurar-se ao pêlo de, ou escalar, um colosso.
Mas destruir um colosso, intento nem sempre pouco difícil de cumprir, celebrado não mais o é, e o jogador tampouco compreende que está a ser alvo de um objeto de obsessão e de uma entidade malévola, senão que os tentáculos negros que rebentam do colosso derrubado e penetram Wander são o presságio de um mal maior. Um manto de culpa começará a cobrir aquele que se atreve a ver sucumbir criaturas de uma terra há muito intocada, que gruem e choram com cada facada, sacodem o corpo para não deixarem de viver e ver-se viva uma amada. Poético ou não, é aqui que entra, talvez como primeira vez nos videojogos, o dilema moral da violência. O jogador sente as suas ações virtuais e apercebe-se que são moralmente reprováveis. A mão do jogador é, mais presente que nunca, a mão do protagonista.
Do cadáver colossal emana um feixe de Luz até o Céu — nexo, elo de entrada das energias luminosa e negra (Luz e Treva, as temáticas que correlacionam a trilogia de Ueda) —, que imana Wander, por deste também a Treva fazer parte, e o transcende, levitando, de volta ao santuário. O regresso (que subtilmente representa o ecrã de loading) é-lhe(s) imanente na medida em que reune os amantes — tanto ao alucinar com uma voz feminina, como ao iludir com a visão onírica de Mono viva, ou, antes, ao acordar, dar vista a Mono deitada, imóvel — e, ainda que não faça parte desta relação, o jogador é absorvido pela mesma necessidade de ver o que poderá acontecer a Mono. No santuário, a Luz brota uma nova pomba que circunda a donzela, e o respetivo ídolo petrificado, correspondente ao colosso, é, em clarão, estourado. Wander torna-se mais forte, traduzido nas estatísticas de vida e energia: cada vez mais se aproxima de uma forma sobre-, antihumana, corrompido do interior pela Treva, visível, mas inevidente, nos olhos e na pele transfigurados. Resta-lhe repetir o ciclo.
Os colossos foram posicionados em zonas abscônditas, periféricas, e a espada não indica um caminho direto, explícito. A exploração do mapa impõe uma ligação entre o jogador e Agro, a égua, que também tem um papel ativo em combate. Neste ermo, isolado e vasto mundo, ela é a única companhia, leal. Nos minutos que precedem cada batalha, Shadow of the Colossus é silencioso, dá lugar à profunda contemplação da Natureza, à meditação. O jogador poderá encontrar árvores de fruto, lagartos de cauda brilhante, descobrir truques de manuseio do cavalo, agarrar águias e com elas sobrevoar as mais belas paisagens, tornadas palco às mais variadas expressões lúdicas. Cognoscente do pouco que conhece, aquilo que desconhece, imagina: poderá idealizar o próximo colosso, teorizar sobre as ruínas que vê, intelectualizar símbolos, vestígios, procurar por segredos inexistentes. Este também é o poder de Shadow of the Colossus: permitir a todo e qualquer jogador criar um imaginário que é só seu e que responde a questões que não têm resposta, num mundo fictício que existe por si próprio e se expande nas mentes de quem o ocupa, de quem acredita: o poder da arte que o ser humano, incapaz de responder às causas da sua própria existência, produz, porque "nada" mais importa.
No caminho para o décimo sexto, e último, colosso, a ponte por onde atravessam um profundo abismo, rui por detrás de cada galope. Quase no fim, Agro dá um passo em falso, mas sacode Wander para um lugar seguro, antes de desabar e cair ao rio. Sem modo de voltar atrás, a única opção é terminar aquilo que começou. Vence. Regressa. É desvendada a verdade: libertara o poder de Dormin, uma divindade demoníaca há séculos dividida e selada no interior dos colossos. Lord Emon, xamã da tribo de Wander, e alguns guerreiros, previram a calamidade e alcançam o santuário. Sem outra alternativa, Emon coordena a execução de Wander que estende o braço, de mão aberta, na direção de Mono, antes de tombar. Dormin incorpóreo possui Wander. Com a espada anciã, Emon artificia um intenso portal de luz, que aspira a energia negra do protagonista e faz desmoronar a ponte de entrada às Terras Proibidas. Consegue escapar com os restantes guerreiros. Wander renasce como bebé bicorne, Mono ressuscita, sim, e Agro reaparece, coxa. Em conjunto, sobem a extensa escadaria do santuário. No topo encontram um jardim paradisíaco. O resto, esse pertence à imaginação do jogador, só.